sexta-feira, 3 de julho de 2015

Em Belorado... um anjo

 

"Ela acreditava em anjo e, porque acreditava, eles existiam."

 Clarice Lispector


Nem só de reflexão e tranquilidade vive o Peregrino. Em algum momento, o cansaço, a dor, a fome, o calor, a vontade de chegar e descansar muitas vezes tomam conta e nos tira a razão.

Num dia intenso de caminhada, o calor era forte, o sol quente e o vento castigava bastante. Para completar, grande parte do caminho passava ao largo da rodovia. Terra batida, árido, por mais bonito que fosse o visual do lado esquerdo, campo verde, flores, pássaros... enquanto que à direita: carros, ônibus e caminhões, muito barulho!

Saímos do Albergue Victoria de Cirueña pela manhã por volta das 8:30hs,  felizes caminhando com o casal Pam e Derek, da Nova Zelandia, o americano Tex e seu cachorro Apache e a mexicana e seu filho (desculpem... não me lembro os nomes!), conversas, paradas e fotos. Parada para o almoço e parte do grupo resolveu ficar em Viloria de Rioja.



A turma toda.. faltou a Lia, que está tirando a foto!!

Decidimos seguir em frente mais 9 KM até Belorado.

Caminhávamos em fila indiana: Karine, Lia e eu, alguns passos atrás a peregrina mexicana e seu filho nascido na Alemanha nos acompanhavam. Nenhuma palavra, somente o som dos passos, as fivelas das mochilas, respiração ofegante. os olhos pregados no horizonte em busca de algum sinal do próximo pueblo. 

 Em algum lugar do caminho


Já era final da tarde, perto das 18:00hs, mas o sol ainda quente. Ainda faltavam 5 Km, meu joelho esquerdo doída demais, caminhava sem dobrá-lo, com a perna dura. Minha cabeça só pensava na chegada, no albergue e no descanso. O sacrifício era grande, eu procurava mentalizar coisas agradáveis e esquecer das dores, mas parecia impossível. Um passo depois do outro e nada de avistarmos o local. Parecia que não íamos aguentar.

Eu estava preocupada com todos, buscávamos um local com banheiro, e nada!! A Karine muito prática e sem nenhum pudor já tinha resolvido a situação "no matinho". Seguimos caminhando.

Chegamos em Belorado e avistamos um albergue me na entrada do pueblo. Mas, já tínhamos uma regra de buscarmos um albergue mais na área central. perto de restaurante, mercado e farmácia.
Parecia que tudo era muito distante. O rapaz alemão olhou no guia e viu um albergue chamado Cuatro Cantones, resolovemos procurá-lo.




 Entrada do albergue El Corro


No centro do pueblo*, a Karine viu outro albergue e falou para ficarmos nele. Eu disse para caminharmos um pouco mais para buscarmos o Cuatro Cantones. Vimos uma placa indicando o local e a distância: 450 metros!! Eu disse: nossa...meio km! A lia sugeriu que telefonássemos para um taxi vir nos buscar. Nesse momento já nem raciocinávamos! A Karine teve um verdadeiro "surto", o tão chamado "xilique", começou a falar que não andaria mais nenhum centímetro, que estávamos ao lado de outro albergue (Albergue Municipal "El Corro"), estava cansada, que éramos doida de chamarmos taxi para chegar no albergue, etc!! Estávamos super cansadas!! Achei engraçado, mas vi que era sério! Resolvi acalmar a situação, falei para a Karine se tranquilizar e disse: sim, ficaremos nesse albergue!
Conversei com os amigos mexicanos e expliquei a situação, o cansaço, que prontamente compreenderam e seguiram em frente.




 Eu e Alberto

Entramos no Albergue, já eram quase 19:00hs. Um peregrino nos indicou que a recepção  no andar superior. Subimos de botas, stick e mochilas (nem vimos o cartaz que solicitava para deixarmos as botas embaixo).

Encontramos o Alberto, um anjo que nos acolheu, com um sorriso!! Solicitamos uma cama e um chuveiro. Acho que ele ficou assustado com a nossa cara de cansadas e nos pediu para nos sentarmos no sofá por 5 minutos. Ficamos sentadas, largadas, qase desfalecidas aguardando sem trocarmos nenhuma palavra!

Alberto retornou, e com delicadeza indicou o andar superior dizendo que era o melhor quarto do albergue, e estava vazio! Perfeito! Sem pensar subimos as escadas, não havia nenhum peregrino no quarto, e pelo andar das horas dificilmente chegaria mais algum! Nos mostrou o banheiro praticamente privativo, e disse que prepararia um belo jantar!! E ainda poderíamos descansar, tomar banho e somente depois fazer o registro e o pagamento (isso faz a maior diferença!!). Estávamos no paraíso!! Cada uma numa cama embaixo com o "closet" (chamávamos de closet a cama superior do beliche que ficava vazia), espaço para espalharmos nossas coisas e muito  conforto.

Mais tarde, Alberto nos serviu um jantar delicioso, acompanhado de uma boa conversa. Dormimos e descansamos como rainhas! Uma noite de recuperação das energias. Solicitei ao Alberto um pouco de gelo para colocar no meu joelho. Ele me trouxe um pacote de "verduritas" congeladas!! Achei inusitado!

Acordamos bem tarde, por volta das 8:00hs (na maioria dos albergues esse é o horário que todos devem sair), nos arrumamos calmamente, quando o Alberto entra no quarto para ver se estávamos bem, pois todos os peregrinos já haviam saído!! Ele nos aguardava com um belo café da manhã, conversamos e tiramos fotos.

Foi uma estadia memorável.

O Caminho tem muitas surpresas, Quando menos esperando um anjo cruza o nosso caminho, nos oferecendo uma mão amiga, um pouco de carinho, atenção. A caminhada é bastante difícil, temos que nos adaptar às circunstâncias, abdicar de conforto, de privacidade. Cada pessoa que passa pelo nossa caminhada se torna especial.

Nesse dia o anjo se chamava Alberto!



Alberto



* entendemos como pueblo, localidades com menos de 10.000 habitantes.


ULTREYA!!











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