segunda-feira, 24 de abril de 2017

Conversas no albergue

ÍTACA
Se partires um dia rumo a Ítaca 
faz votos de que o caminho seja longo, 
repleto de aventuras, repleto de saber. 
Nem os Lestrigões nem os Ciclopes 
nem o colérico Posídon te intimidem; 
eles no teu caminho jamais encontrarás 
se altivo for teu pensamento, se sutil 
emoção teu corpo e teu espírito tocar. 
Nem Lestrigões nem os Ciclopes 
nem o bravio Posídon hás de ver, 
se tu mesmo não o levares dentro da alma, 
se tua alma não os puser diante de ti. 
Faz votos de que o caminho seja longo. 
Numerosas serão as manhãs de verão 
nas quais, com que prazer, com que alegria, 
tu hás de entrar pela primeira vez um porto 
para correr as lojas dos fenícios 
e belas mercancias adquirir: 
madrepérolas, corais, âmbares, ébanos, 
e perfumes sensuais de toda espécie, 
quando houver, de aromas deleitosos. 
A muitas cidades do Egito peregrina 
para aprender, para aprender dos doutos. 
Tem todo o tempo Ítaca na mente. 
Estás predestinado a ali chegar. 
Mas não apresses a viagem nunca. 
Melhor muitos anos levares de jornada 
e fundeares na ilha, velho enfim, 
rico de quanto ganhaste no caminho, 
sem esperar riquezas que Ítaca te desse. 
Uma bela viagem deu-te Ítaca. 
Sem ela não te ponhas a caminho. 
Mais do que isso, não lhe cumpre dar-te. 
Ítaca não te iludiu, se a achas pobre. 
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência, 
e agora sabes o que significam Ítacas.


                                                              Konstantinos Kaváfis 
                                                        (tradução de José Paulo Paes)

A certeza de cada dia é que chegaremos no final dele a algum dos albergues. Não, não é nada fácil dormir num quarto enorme, cheio de beliches, com banheiro coletivo, misto, a torneira do chuveiro com timer, ruídos, roncos, odores, luzes, e outras situações que podem suprimir o conforto. mas confesso que em nenhum momento pensei em trocar aquele clima maravilhoso dos grupos de peregrinos, das conversas despretensiosas, das trocas de experiências, das histórias, do compartilhar, do companheirismo, da cumplicidade, da energia de cada pessoa que percorre aquelas trilhas, por qualquer outro local. 
UAU!!! Chegamos! Chegar no albergue é um momento único, mágico! Certeza de uma etapa difícil, mas vencida, conseguimos!  Momento da descoberta do local do descanso, de conhecer o hospitaleiro, de conhecer novos lugares.



   Eu e Dani fazendo graça no albergue


Existem os albergues paroquiais, os privados e os públicos, cada um deles tem suas características próprias. Os valores variam de uma doação espontânea a 12 euros ( foi o teto que paguei), também há variação de tamanho dos quartos, limpeza, quantidade de camas ou beliches, etc.
Mas o mais interessante mesmo é o momento de descanso e da possibilidade de conhecer novas histórias.


Com hospitaleiro Lobo


Foi nm desses albergues que fui apresentada à poesia acima pela Karine. Ela começou a declamar, toda bem decorada, cadenciada, e logo me interessei. Senti uma cadência nos sons das palavras, e a proximidade com o significado do Caminho, estávamos eu, Karine e Lia, predestinadas, a caminhar sem pressa, pois já sabíamos o que nos esperava.
Agora sabemos o significado de Ítaca, e o aprendizado e a riqueza que nos deixou.

Uma observação especial àqueles que tem dúvidas de ficar em albergue, eu indico tranquilamente essa experiência única. Tomem coragem e enfrentem, certamente não se arrependerão!

Gratidão especial a Karine.

Ultreya!


 

quarta-feira, 19 de abril de 2017

Batendo Recorde no Caminho de Santiago



Os primeiros dias de caminhada são bastante difíceis. O corpo ainda se adaptando a rotina, ao esforço, ao fuso horário, a nova e diferente alimentação, ao estranhamento das camas, do travesseiro, a língua local, ao clima, as roupas, a mochila, e tantas outras coisas.

Particularmente o meu ritmo de caminhada é bastante tranquilo, chega a ser lento, Lia e Karine me acompanham. Na saída do albergue sempre encontramos os moradores do pueblo, o dia nascendo, a vida começando. Geralmente somos deixadas para trás, pois costumeiramente apreciamos a paisagem, as pessoas, tiramos fotos, abastecemos de água e frutas, tudo tranquilamente e sem pressa. Tão sem pressa que eu e a Lia, começamos uma brincadeira de tirar fotos dos batedores das portas, e descobrimos verdadeiros tesouros!





um dos batedores de porta 


Todos passam por nós, deve passar pelas cabeças: essas três são muito tranquilas e não chegarão! E não é que chegamos? Duas ou três horas depois, e lá estamos nós encontrando com os apressadinhos nos mesmos albergues!

Mesmo sem considerarmos uma competição, percebemos que muitas pessoas correm contra o relógio e buscam vencer “as léguas” com maior rapidez. O que nos interessa é o caminhar descompromissado, ouvindo os pássaros, os cucos (pela primeira vez na minha vida ouvi um cuco de verdade!), observando os campos, as flores, conversando, rezando, aprendendo, ouvindo o silêncio, puxando conversa, “temos todo o tempo do mundo” (frase perfeita de Renato Russo).

Dizem que a tartaruga aprecia melhor a paisagem do que a lebre. Acredito nisso! Conhecer os lugares caminhando, apresenta a possibilidade de imprimir na nossa mente uma linda fotografia do momento.
O trecho de Zubiri a Pamplona foi cansativo e sofrido. Sol, vento, mochila e os pés... sempre dando sinais de vida! Vencíamos os trechos e procurávamos nos distrair. 

Perdi a minha concha, ou melhor, ela se desapegou. Comprada em Santiago em 2010, quando lá estive com minha mãe, a mesma que havia usado no Caminho em 2012. Penso que ela está numa mochila nova passeando por ai. A Lia me presenteou com outra.

Decidimos fazer uma boa parada para uma alimentação mais reforçada. Escolhemos um local agradável, na entrada uma enorme escultura de peregrino. Uma cabana de madeira aconchegante. Escolhemos uma mesa de madeira dentro e já fomos verificando o cardápio. Pedimos uma tortilla espanhola, mas sugerimos ao chefe do local, outros ingredientes como: tomate, presunto e queijo (as tortilhas tradicionais levam somente ovos, cebola e batata). Ele topou (devo registrar que muitos resistem a sugestões) e nos ofereceu um verdadeiro manjar dos deuses! Ficou deliciosa!

Seguimos o caminho e chegamos a Pamplona já no fim da tarde. Era o domingo de Páscoa e a entrada da cidade estava deserta. Parecia um lugar fantasma. Chegamos ao centro da cidade, local próximo a catedral e próximo ao  lindo Albergue Jesus Maria. 

O lugar nos surpreendeu logo na chegada. Uma antiga igreja agora adaptada a albergue de peregrinos, um lugar lindíssimo! Ao chegarmos num horário mais avançado, grande parte do albergue já estava ocupado. Fomos designadas ao andar superior, local com quatro beliches separados por divisórias de madeira. Os banheiros grandes e espaçosos, tudo novo e limpo. Escolhemos nossas camas e tratamos de cuidar do banho, lavanderia, alimentação, etc.

Nesse dia conhecemos o casal neozelandês Pam e Derek, simpáticos e animados, que iniciavam o Caminho naquele local, e que seriam nossos companheiros em outras etapas do caminho.



Jantar no Albergue Vitória com Pam e Derek ao fundo

Também no beliche ao lado, um rapaz que imediatamente fizemos amizade, o americano Eric. Ele nos contou que fazia O caminho ao contrário e também tentava bater um Record para o Livro dos Recordes. Ficamos encantadas com a história, a coragem e a resistência dele. 




Eric com as Divas.

Eric realmente batia recordes...caminhava em média 60 Km por dia, com uma única parada de 4 minutos! Tudo monitorado por equipamentos para o devido registro. Alimentava-se de frutas e castanhas. Sim, ele conseguiu! Porém ainda falta a homologação pela equipe do Guiness Book.
Para os peregrinos, o Caminho não é uma competição, mas Eric tinha objetivo próprio, diferente, não menos importante.

O importante é a intenção, o coração e a motivação que nos leva ao caminho.
Hoje, abril/2017, Eric Toddre, voltou ao Caminho, dessa vez pela Via de la Plata, em 2016 percorreu outros também, além da Espanha ainda na França e Itália, acompanhado de sua mãe.
Bom peregrino ele!

Post escrito em 2015



ULTREYA!

quarta-feira, 12 de abril de 2017

O que levar na mochila?


"Quanto mais leve a bagagem, mais feliz a viagem!" 
Patrícia Assmann


Uma das perguntas mais frequentes sobre qualquer caminhada, sem dúvidas é sobre o equipamento. 
Como você consegue passar tanto tempo com tão pouco?
O que você leva?
Qual é a sua mochila?
Qual é a sua bota?
Como prevenir bolhas?
Qual é o peso ideal?

Para qualquer pessoa que vive numa cidade e tem uma vida dentro do normal, pode imaginar que essa é uma tarefa das mais difíceis, mas não impossível!

O meu primeiro caminho longo, foi aqui mesmo pertinho de casa, O Caminho da Fé, o primeiro dia foi duríssimo e grande parte dessa dificuldade foi em razão do peso da mochila, essa caminhada me trouxe muito aprendizado.

Nas duas vezes que fiz O caminho de Santiago, acabei colocando na mochila ítens que rapidamente acabei por "desapegar", para diminuir o peso da mochila.

Recomenda-se que a mochila tenha até 10% do peso do seu corpo. Considerando que a própria mochila já tem seu peso mesmo vazia, você pode selecionar o equipamento que ocupe o restante do peso. Difícil? Muito! lembrando ainda que parte do equipamento é indispensável, sugiro sempre que pesem todo o material antes de realmente decidir o que vai levar.





Eu e Dani com mochila, chapéu, pochete, stick



Fiz uma lista dos ítens que costumo levar:

-saco de dormir 

- botas 

- stick ou cajado

-pochete  para colocar documentos, porta dólar (para levar por dentro da roupa)

-sandália (papete, crocs ou havaianas)

-3 camisetas, sendo 1 de manga longa

-2 calças-bermudas

-1 calça segunda pele

- 1 blusa segunda pele

-3 pares de roupas íntimas

-1 blusa de frio térmica ( fleece)

-1 casaco com corta vento

-lanterna (de cabeça), apito (charme pendurado na mochila)

-4 pares de meias

-luvas, gorro, cachecol e lenço (dependendo da época do ano)

- sabonete, creme e escova dental, pente, shampoo,condicionador, lenços de papel, elásticos e fivelas para cabelo, batom,perfume ( não abro mão...), protetor solar,hidratante e hidratante labial

-necessaire com primeiros socorros: medicamentos de uso pessoal, bandaid, micropore, anti-inflamatório, antigripal, antialérgico, para dor de cabeça, dores em geral, álcool com arnica (ou com cânfora), agulha e linha para tratar bolhas (essa é a pior parte, me tira o sono..),relaxante muscular, compeed (pele artificial, também para bolhas), spray ou pomada anti-inflamatório,tesoura pequena

-toalha de alta absorção ou toalha-fralda

-boné ou chapéu,protetores auriculares

-sacos plásticos

-capa de chuva

-alfinetes, óculos escuros

-garrafa de água ( prefiro as descartáveis)

-caderno para anotações e caneta

-máquina fotográfica e acessórios

-celular e carregador

-guia (não desgrudo do meu de papel!)





Com minha capa de chuva (comprada na loja de artigos chineses"


Observações

1. Não uso necessaire, utilizo sacos plásticos com fecho zip, separo os itens por categorias e espalho na mochila.
2. A minha mochila é Deuter feminina Futura Pro 34 (não sei se ainda é fabricada), já vem com a capa de chuva.
3. A sandália eu prefiro tipo papete, pois é possível usar com meias em alguma necessidade.
4. Em relação às botas, precisa de um capítumo à parte, buscar as confortáveis e sempre 1 número maior do que seu pé, pois nas descidas você pode perder as unhas, as minhas são da Salomon.
5. Um dos ítens mais importantes e que merecem um bom investimento , as meias devem ser as que tem tecnologia para estarem firmes no seu pé, eu gosto das da marca Coolmax ou Lorpen
6. Stick, eu me adaptei com um somente, e vou alternando de mãos, mas tem pessoas que preferem caminhar com os dois.
7. Saco de dormir, como ficamos em albergues, o saco de dormir funciona como lençol, portanto não vejo necessidade de ser muito grosso e para baixas temperaturas, o meu é o mais simples e leve possível.
8. Capa de chuva é um ítem que pesa muito na mochila, porém indispensável, procure as mais leves. Caso a sua mochila não tenha a capa, é muito importante comprar uma capa especial para a mochila.

Cada peregrino terá uma lista própria, cada pessoa deve buscar as suas necessidades e verificando o peso da mochila, o conforto, etc. Essa é a minha, cheguei depois de muito ter estudado e desapegado de verdade!! Cada caminhada é um aprendizado. Busque o seu! Espero ter ajudado!

Ultreya!!!


sexta-feira, 7 de abril de 2017

Puente la Reina

Céu e linha eterna


E segue o caminhar
do céu e da linha do horizonte
a busca 
o caminho 
o encontro consigo em noites derradeiras
e silêncios reveladores

Seu caminhar é obra
em passos vivos sua rima livre
nos faz sonhar também e lembrar
da razão de tudo isso...
As flores raras
as lagrimas soltas
o riso mudo
tudo é alma e coração 
tudo vai, tudo vem
nada é em vão

Pedro Maciel


Durante a minha caminhada em 2015, recebi muitas mensagens de familiares e amigos, de incentivo e admiração, todos caminhando comigo e me acompanhando passo a passo. Recebia diariamente mensagens dos meus filhos e principalmente do meu marido que me presenteou no 4º dia de caminhada com essa linda poesia, que encheu meu coração de amor e energia.

Nesse mesmo dia, em 07/04/2015, estávamos em  Puente la Reina  (amo o nome dessa cidade!!), na Província de Navarra. Como estávamos no País Basco, todas as placas e sinalizações tinham 2 idiomas, o Espanhol ou Castelhano e o Basco, detalhe interessantíssimo!
Puente La Reina em espanhol; Gares em Basco


Acordamos cedo no Albergue Paroquial e seguimos a procura de algo para nos alimentar. O dia amanheceu frio, mas o sol estava claro na tentativa de nos aquecer, decidimos que era hora de desapegar de mais alguns objetos e buscamos uma agência dos Correios. Vale lembrar que os Correios da Espanha possuem um serviço especial para os peregrinos que desejam remeter seus pertences direto a Santiago,

Passando pela Ponte Medieval sobre o Rio Arga, na saída da cidade, as setas nos levavam para o lado direito, mas a curiosidade me encaminhou uns passos a mais à esquerda, e a imagem que meus olhos puderam ver foi incrível!
Momento mágico se apresentou quando a sombra da referida ponte formava um espelho sobre as águas calmas do Rio Arga, impressionante!



Ponte Medieval


Ficamos ali por alguns minutos admirando aquela maravilha, obra de Deus e do homem medieval, a cada foto um suspiro, um comentário. Pudemos perceber que grande parte dos peregrinos não se interessam em perceber esses detalhes, que pena... a pressa pode te privar de momentos incríveis!
Cenas que ficaram gravadas em nossa memória e que nos impulsionaram a caminhar durante todo aquele lindo dia.
Esses presentes do caminho, que nos apresentam a cada dia são as partículas de ânimo e emoção que acalentam os nossos corações e nos enchem de gratidão.



 Entrada da Ponte Medieval

Quais os presentes que o seu Caminho vai te trazer hoje?

Ultreya!